22 - A IGREJA E A OBRA DE DEUS - Watchman Nee
A IGREJA E A OBRA DE DEUS
Se realmente entendermos a natureza da obra de Deus, prontamente reconheceremos que a nossa alma verdadeiramente é um grande empecilho para a obra de Deus. É verdade que Deus é muito impedido pela alma do homem. O povo de Deus deve conhecer o propósito supremo da igreja e também seu inter-relacionamento, o poder de Deus, e a obra de Deus, dentro da Sua igreja
A MANIFESTAÇÃO DE DEUS E A RESTRIÇÃO DE DEUS
Houve um tempo em que Deus Se confiou à forma humana — na Pessoa de Jesus de Nazaré. Antes da Palavra se tornar carne, a plenitude de Deus não conhecia limite algum. No entanto, uma vez que a encarnação da Palavra veio a ser uma realidade, Sua obra e Seu poder eram limitados a esta carne. Este Homem, Cristo Jesus, restringirá a Deus ou O manifestará? A Bíblia nos mostra que, longe de limitar a Deus, Ele manifestou a plenitude de Deus de modo maravilhoso.
Em nossos dias, Deus se confia à igreja. Seu poder e Sua obra estão na igreja. Assim como nos Evangelhos achamos toda a obra de Deus dada ao Filho, assim hoje Deus confiou à igreja todas as Suas obras, e não agirá à parte dela. Desde o Dia do Pentecoste até ao tempo presente, a obra de Deus tem sido levada a efeito através da igreja. Pense na responsabilidade tremenda da igreja! O ato de Deus em confiar-Se à igreja é como Seu ato anterior de confiar-Se a um só Homem, Cristo — sem reservas, nem restrições. A igreja, porém, pode restringir a obra de Deus ou limitar Sua manifestação.
Jesus Cristo é o próprio Deus. Seu ser inteiro, de dentro para fora, é revelar a Deus. Suas emoções refletem as emoções de Deus; Seus pensamentos revelam os pensamentos de Deus. Enquanto estava nesta terra, Cristo podia dizer: "Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade; e, sim, a vontade dAquele que me enviou... O Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai... Porque eu não tenho falado por mim mesmo, mas o Pai que me enviou, esse me tem prescrito o que dizer e o que anunciar" (João 6 verso 38; 5 verso 19; 12 verso 49). Aqui vemos um Homem, Jesus, a quem Deus está confiado. Ele é a Palavra que se tornou carne. É Deus que se torna Homem. É perfeito. Quando veio o dia em que Deus desejou distribuir Sua vida entre os homens, Aquele Homem podia declarar: "Se o grão de trigo, caindo na terra... morrer, produz muito fruto." (João 12 verso 24). Deste modo, Deus escolheu a igreja para ser Seu vaso hoje — o vaso daquilo que Ele fala, para a manifestação do Seu poder e da Sua operação.
O ensino básico dos Evangelhos é a presença de Deus e em um Homem, ao passo que o das Epístolas é a de Deus na igreja. Que nossos olhos sejam abertos ao fato glorioso: Deus anteriormente habitava no Homem Jesus Cristo, mas agora Deus está na igreja (nos cristãos), e não em qualquer outra coisa.
Quando esta luz raiar sobre nós, ergueremos espontaneamente nossos olhos ao céu, dizendo: "Ó Deus! Quanto nós Te impedimos!" Em Cristo, o Deus onipotente ainda era onipotente sem sofrer qualquer restrição ou estreitamento. O que Deus espera hoje é que este mesmo poder possa permanecer intato à medida em que Ele reside na igreja. Ele deve ficar tão livre para manifestar-Se na igreja, o quanto era livre para manifestar-Se em Cristo. Qualquer restrição ou incapacidade na igreja invariavelmente limitará a Deus. Esta é uma coisa muito séria; não a mencionamos levianamente. O empecilho em cada um de nós constitui-se em empecilho para Deus.
Por que a disciplina do Espírito Santo é tão importante? Porque a divisão entre a alma e o espírito é tão urgente? É porque Deus precisa ter um caminho através de nós. Que ninguém pense que estamos interessados apenas na experiência espiritual. Nossa solicitude é o caminho de Deus e Sua obra. Deus está livre para operar através das nossas vidas? A não ser que sejamos tratados e quebrantados através da disciplina, restringiremos a Deus. Sem o quebrantamento da nossa alma, a igreja não pode ser um canal para Deus.
O QUEBRANTAMENTO — A MANEIRA DE DEUS OPERAR
Passemos agora a considerar como o quebrantamento da nossa alma afetará nosso modo de ler a Bíblia, nosso modo de ser ministros da Sua Palavra, e nossa pregação do evangelho.
(1) Lendo a Bíblia: Está além de dúvida que o que somos, determina o proveito que tiramos da Bíblia. Quão frequentemente o homem, na sua soberba, depende da sua mente não renovada e confusa para ler a Bíblia. O fruto é nada senão seu próprio pensamento. Não toca o espírito das Sagradas Escrituras. Se esperamos encontrar o Senhor na Sua Palavra, nossos pensamentos devem primeiramente ser quebrantados por Deus. Talvez tenhamos alto conceito da nossa habilidade, mas para Deus é um grande obstáculo. Nunca pode levar-nos para o pensamento de Deus.
Há, pelo menos, duas exigências básicas para ler a Bíblia: primeiramente, nosso pensamento deve entrar no pensamento da Bíblia; e, em segundo lugar, nosso espírito deve entrar no espírito da Bíblia. Você deve pensar como o escritor — seja Paulo, Pedro ou João — estava pensando quando escrevia a Palavra inspirada pelo o Espírito de Deus. Seu pensamento deve começar onde o pensamento da Bíblia começa, e desenvolver como o da Bíblia se desenvolve. Você deve ter a capacidade de raciocinar como a Bíblia raciocina e de exortar como a Bíblia exorta. Em outras palavras, seu pensamento deve ser engrenado com o pensamento da Bíblia. Isto permitirá ao Espírito de Deus que lhe dê a revelação exata das Escrituras.
Pense numa pessoa que vem à Bíblia com sua mente já fixa. Lê a Bíblia para obter apoio para suas doutrinas preconcebidas. Que tragédia! Uma pessoa experiente, depois de escutar alguém assim falar durante cinco ou dez minutos, pode discernir se quem fala está usando a Bíblia para suas próprias finalidades, ou se seu pensamento entrou no pensamento da Bíblia. Há uma diferença de âmbitos aqui. Uma pessoa pode levantar-se e dar uma mensagem agradável que parece ser bíblica, mas, na realidade, seu pensamento é contraditório ao pensamento da Bíblia. Ou podemos escutar alguém pregar, cujo pensamento expressa o pensamento da Bíblia, e portanto, é harmonioso e unido com ela. Embora esta condição deva ser a norma, nem todos chegam a ela. Para unir nosso pensamento com o pensamento da Bíblia, é necessário que nossa alma seja quebrantada. Não pense que nossa leitura bíblica é fraca por causa de falta de instrução. O defeito está muito mais em nós, porque nossos pensamentos não foram subjugados por Deus. Ser quebrantado em nossa alma desta maneira é cessar as nossas próprias atividades e o nosso pensamento subjetivo, e paulatinamente começar a tocar a mente do Senhor e seguir a tendência do pensamento da Bíblia. Não é antes de nossa alma ser quebrantada que podemos entrar no pensamento da Palavra de Deus. Só podemos entrar no pensamento da Palavra de Deus após o quebrantamento da nossa alma.
Ora, embora isto seja importante, ainda nos falta mencionar o assunto primário. A Bíblia é mais do que palavras, ideias e pensamentos. O aspecto mais destacado da Bíblia é que o Espírito de Deus é liberado através deste Livro. Quando um escritor, seja Pedro, João, Mateus ou Marcos, é inspirado pelo Espírito Santo, sua mente renovada segue o pensamento inspirado e seu espírito é liberado juntamente com o Espírito Santo. O mundo não pode entender que há um Espírito na Palavra de Deus, e que este Espírito pode ser liberado exatamente como é manifestado no ministério profético. Hoje, se você estiver escutando uma mensagem profética, reconhecerá que está presente algo misterioso, além das palavras e dos pensamentos. Você pode sentir isto claramente, e podemos muito bem chamá-Lo: "O Espírito na Palavra de Deus".
Não há somente pensamentos na Bíblia; o próprio Espirito se manifesta através d'Ela. Assim, é somente quando nosso espírito pode sair e tocar o Espírito da Bíblia, que nós podemos entender o que a Bíblia está dizendo. Ilustrando: pensemos num menino mau que deliberadamente quebra a janela de um vizinho. O vizinho sai e lhe faz fortíssimas censuras. Quando a mãe do menino fica sabendo da travessura, ela também repreende severamente. Mas, de alguma maneira, há uma diferença de espírito entre as duas repreensões. A primeira é mal-humorada, feita com um espírito zangado; a outra expressa o amor, a esperança, e o treinamento. Este é apenas um exemplo simples. O Espírito que inspira a composição das Escrituras é o Espírito eterno, sempre presente na Bíblia. Se nossa alma foi quebrantada, nosso espírito é liberado e pode tocar aquele Espírito que inspira as Escrituras. De outra forma, a Bíblia permanecerá como um livro cheio de letras em nossas mãos, porque a nossa alma não foi quebrantada.
(2) O Ministério da Palavra: Deus deseja que entendamos a Sua Palavra, pois este é o ponto de partida do serviço espiritual. Está igualmente solícito para colocar Sua Palavra como mensagem dinâmica em nosso espírito de modo que possamos usá-la para ministrar à igreja. Em Atos 6 verso 4, lemos: "E, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao Ministério da Palavra". "Ministério" significa servir. Assim, o Ministério da Palavra significa servir as pessoas com a Palavra de Deus.
No ministério da Palavra, qual é a dificuldade que nos leva a deixar de liberar a Palavra dentro de nós? Frequentemente, alguém pode sentir-se muito preocupado com uma palavra que, segundo sente, deve comunicar aos irmãos. Mesmo assim, enquanto se levanta para falar frase após frase, a preocupação interna permanece tão pesada como sempre. Mesmo depois de passar uma hora, não há senso de alívio, e, finalmente, sai carregando o mesmo fardo de uma mensagem que não foi entregue. Por que? É porque sua sua alma não foi quebrantada. Ao invés de serem úteis, as faculdades da sua alma tornam-se um obstáculo para o seu espírito.
Uma vez, porém, que a sua alma for quebrantada, a expressão já não é problema. Então, a pessoa pode pensar em palavras apropriadas para expressar seu sentimento intimo. Através da liberação do espírito, o fardo interno é aliviado. Esta é a maneira de ministrar a Palavra de Deus à igreja. Repetimos, então: A nossa alma é o maior empecilho ao Ministério da Palavra de Deus.
Muitos têm a noção errônea de que são as pessoas habilidosas que melhor podem ser usadas. Como isto é errado! Não importa quão habilidosos nós sejamos, a nossa alma nunca poderá substituir o nosso espírito. Somente depois de nossa alma ter sido quebrantada é que o nosso espírito pode achar pensamento adequado e palavras apropriadas. A casca da nossa alma deve ser esmagada por Deus. Quanto mais é despedaçada, tanto mais a vida no nosso espírito é liberada. Enquanto esta casca de nossa alma permanecer intata, a mensagem que pesa no nosso espírito não pode ser liberada, nem a vida e o poder de Deus podem fluir de nós para a igreja. É principalmente através do Ministério da Palavra de Deus que a vida de Deus e o poder de Deus são fornecidos. A não ser que nós tenhamos nosso espírito liberado, as pessoas podem ouvir nossa voz; mas não podem tocar a vida. Nós podemos ter uma palavra para dar, mas outras pessoas deixam de recebê-la; pois nós não temos meios de expressão. A dificuldade é que a vida que há dentro de nós, deixa de fluir. Há uma Palavra de Deus atuante por dentro, mas não pode ser manifestada por causa do obstáculo do lado de fora. Há uma Palavra de Deus atuante em nosso espírito, mas Ela não pode ser manifestada por causa da falta de quebrantamento da nossa alma. Por isso, Deus não tem um livre caminho através de nós.
(3) Pregando o Evangelho: Há um conceito geral, falso, de que as pessoas creem no evangelho porque, ou foram mentalmente convictas da exatidão doutrinária, ou emocionalmente comovidas pelo seu apelo. Na realidade, os que correspondem ao evangelho por qualquer destas duas razões não permanecem nEle. O intelecto e a emoção precisam ser alcançados, mas estes sozinhos, são insuficientes. A mente pode encontrar-se com a mente, e a emoção pode alcançar a emoção, mas a salvação sonda mais profundamente. O Espírito deve tocar o nosso espírito. Somente quando o espírito do pregador floresce e brilha é que os pecadores caem e se rendem a Deus. Este é o espírito apropriado e necessário para a pregação do evangelho.
Certo mineiro grandemente usado por Deus escreveu um livro chamado "Seen and Heard" ("Visto e Ouvido"), em que relata suas experiências ao pregar o evangelho. Fomos profundamente comovidos ao ler este livro. Embora fosse um irmão simples, sem alto grau de cultura nem com dons especiais, ofereceu-se inteiramente ao Senhor e foi poderosamente usado por Ele. Uma coisa o caracterizava: era um homem quebrantado; seu espírito era puro. Quando estava numa reunião, ouvindo um pregador, sentiu uma preocupação tão grande pelas almas que pediu ao pregador permissão para falar. Subiu ao púlpito, mas não vinham as palavras. Seu espírito ardia tanto com uma paixão pelas almas que suas lágrimas jorravam. Finalmente, conseguiu pronunciar apenas umas poucas sentenças pouco compreensíveis. Mesmo assim, o Espírito Santo encheu aquele local de reunião; as pessoas ficaram convictas dos seus pecados, e de suas condições de perdidas. Aqui havia um jovem que era quebrantado — tinha poucas palavras, mas quando seu espírito fluía, as pessoas eram poderosamente tocadas. Ao ler sua autobiografia, reconhecemos que ele era alguém cujo espírito era totalmente liberto. Era o instrumento para salvar a muitos durante sua vida.
Este é o modo certo de pregar o evangelho. Sempre que vêmos alguém que não é salvo, sentimos que devemos pregar-lhe o evangelho, nós devemos permitir que o nosso espírito seja liberado. Pregar o evangelho é puramente uma questão de ter a nossa alma quebrantada, de modo que o nosso espírito possa fluir e tocar o espírito de outros pessoas. Quando o nosso espírito toca o espírito de outra pessoa, o Espírito de Deus vivifica aquele espírito que está em trevas de modo que aquela pessoa possa ser maravilhosamente salva. Se, porém, nosso espírito estiver amarrado pela nossa alma, Deus não tem via de saída através de nós, e o evangelho fica bloqueado. É por isso que focalizamos tanta atenção em lidar com a nossa alma. Se nos falta este tratamento, não temos poder para ganhar almas, embora tenhamos todas as doutrinas de cor. A salvação vem quando nosso espírito toca o espírito de outra pessoa. Então, aquela alma não pode deixar de ser quebrantada e prostrar-se aos pés do Senhor. Ó amados, quando nosso espírito é verdadeiramente liberado, as almas certamente serão salvas.
Uma vez que as pessoas são salvas, Deus não quer que elas esperem para lidar com seus pecados, que esperem mais anos para se consagrarem, e que esperem ainda mais tempo para responderem à chamada de realmente seguirem ao Senhor. Tão logo que as pessoas creem, devem imediatamente voltarem-se dos seus pecados, consagrarem-se totalmente ao Senhor, e romperem o poder das coisas deste mundo. Sua história deve ser como aquelas que são registradas nos Evangelhos e em Atos. Para o evangelho ter seu efeito mais completo no homem, o Senhor precisa ter um caminho nas vidas dos mensageiros do evangelho.
Nestes anos temos ficado totalmente convictos de que o Senhor está trabalhando para a restauração. O evangelho da graça e o evangelho do reino devem ser juntados. Nos Evangelhos, os dois nunca são separados. Somente em anos posteriores é que parece que aqueles que ouviram o evangelho da graça, sabem pouco ou nada do evangelho do reino. Deste modo, os dois foram separados. Mas já é tempo para eles serem unidos, de modo que as pessoas sejam completamente salvas, deixando tudo e se consagrando totalmente ao Senhor.
Curvemos nossa cabeça diante do Senhor e reconheçamos que o evangelho deve ser completamente pregado, e seus mensageiros totalmente tratados. Para o evangelho entrar nos homens, devemos permitir que Deus seja manifestado em nós. Assim como a pregação eficaz do evangelho requer mais poder, assim também os mensageiros do evangelho devem pagar um preço mais alto. Devemos colocar tudo sobre o altar. Oremos assim: "Senhor, coloco meu tudo sobre o altar. Acha um caminho através de mim a fim de que também a igreja ache um caminho em mim. Eu não gostaria de ser aquele que bloqueia a Ti, e que bloqueia a igreja."
O Senhor Jesus nunca restringiu Deus. Durante quase dois mil anos, Deus tem trabalhado na igreja, visando o dia em que a igreja já não O restringirá. Assim como Cristo manifesta plenamente a Deus, assim também será com a igreja. Passo a passo, Deus está instruindo Seus filhos, e tratando com eles; uma vez após outra, sentimos Sua mão sobre nós. Assim será até aquele dia, em que, a igreja fique sendo realmente a plena manifestação de Deus. Hoje, voltemo-nos para o Senhor e confessemos: "Senhor, estamos envergonhados. Atrasamos a Tua obra; fomos um empecilho na Tua vida; bloqueamos a propagação do evangelho; e limitamos o Teu poder". Individualmente em nosso coração, dediquemo-nos a Ele novamente, dizendo: "Senhor, ponho meu tudo sobre o Teu altar, a fim de que Tu tenhas um caminho através de mim."
Se esperamos que a eficácia do evangelho seja plenamente restaurada, a consagração deve ser total. Devemos consagrar-nos a Deus assim como na igreja primitiva. Que Deus tenha uma via de saída através de nós.
Na próxima mensagem veremos: "O Quebratamento da Alma e a Disciplina do Espírito Santo".